Transparência

Rede de ONGs ensina a deter corrupção enquanto é tempo

Sem alarde, Observatórios Sociais se alastram por cidades médias e pequenas do Brasil, monitorando editais de licitação de forma sistemática, antevendo fraudes e garantindo vultosa economia para os cofres municipais. E agora querem pôr o pé nas principais metrópoles do país

Daniel Jelin Fiscalização sistemática previne a corrupção e eleva o debate sobre a qualidade dos gastos públicos (iStock)

Há dois caminhos para combater a corrupção. Um deles é o de punir os malfeitos — e todos sabem como é difícil obter condenações no Brasil, e mais ainda reaver os valores desviados. O outro caminho é o da prevenção, o de se antecipar aos corruptos. É a isso que se dedica o Observatório Social do Brasil (OSB), uma rede de ONGs que se alastrou por 14 estados. O ponto de partida é a constatação de que boa parte das fraudes pode ser adivinhada nas entrelinhas das licitações. Basta ter acesso à papelada, o olho treinado e (muita) paciência para desenredar suas tramas. O mesmo método evita que erros que não envolvem má fé, mas saem caro para o contribuinte, sejam cometidos. Em 2012, a OSB conseguiu impedir que 305 milhões de reais escoassem dos cofres municipais.

A ideia nasceu em Maringá, no Paraná, na esteira de um escândalo de corrupção que estourou na gestão do prefeito Jairo de Moraes Gianoto, tendo por pivô seu secretário de Fazenda, Luiz Antonio Paolicchi. Gianoto se afastou do cargo em 2000, perdeu a reeleição e se retirou da política — e da cidade. Em 2006, foi condenado a 14 anos de prisão por desvio de verbas públicas, sonegação e formação de quadrilha. Em 2010, em nova sentença condenatória, a Justiça cobrou o ressarcimento de estratosféricos 500 milhões de reais em ação por improbidade administrativa. Gianoto recorre em liberdade. Paolicchi foi assassinado em 2011.

Enquanto os processos se arrastavam na Justiça, um grupo de moradores indignados resolveu, em vez de vandalizar as lojas da cidade ou incendiar caminhões, organizar um sistema de fiscalização do poder público que prevenisse futuras tramoias. O marco zero é 2005. Naquele ano, a prefeitura lançou um edital para a compra de 2.918.000 comprimidos para dor de cabeça. Na licitação, foi fixado o valor de 0,009 centavos por drágea. Na hora do empenho, “esqueceram” um zero, e o preço saiu por 0,09. Esse singelo “descuido” teria então o efeito de multiplicar por dez o gasto total (de 26.262 mil reais para 262.620 mil reais). Revelada a trapalhada, o processo foi suspenso.

A experiência em Maringá deu tão certo que começou a ser reproduzida por outras cidades. Com o tempo, ganhou um amplo leque de apoios institucionais: Ministério Público, OAB, Federações da Indústria e do Comércio, Receita Federal, Tribunais de Contas, universidades e, principalmente, as Associações Comerciais, que abrigam 70% dos Observatórios Sociais (OS). Atualmente, 77 municípios contam com seus próprios observatórios. Na próxima segunda-feira, Curitiba sedia o quarto encontro nacional, para que as boas práticas de cada unidade sejam compartilhadas pelas demais.

“Depois que roubam…” – O empresário Ater Cristofoli, de 49 anos, dirigiu a primeira réplica do Observatório, em Campo Mourão, no interior do Paraná, onde nasceu e hoje mantém fábricas, uma fundação, escola técnica e incubadora. “A gente se tocou que, enquanto fazia rifa, vendia jantar e colhia doações para ajudar a Santa Casa, o Lar dos Velhinhos ou a APAE, milhares de reais eram jogados fora em compras mal feitas ou desvios”, diz. “E o grande negócio está na prevenção. Depois que roubam… aí esquece.” Com a entrada em cena do Observatório Social, os custos com material escolar caíram para um terço, e o gasto com medicamentos, pela metade. Cristofoli hoje está à frente da organização nacional dos Observatórios Sociais, e seu objetivo é acelerar a irradiação da franquia.

Basicamente, os Observatórios Sociais funcionam assim: um punhado de técnicos, voluntários e estagiários debruça-se sobre os editais das principais modalidades de licitação (concorrência, convite, tomada de preços e pregões), com especial atenção aos casos em que o governo a descarta (inexigibilidade ou dispensa de licitação); encontrada uma suspeita, a secretaria ou a prefeitura é formalmente notificada; não havendo providências, o caso é reportado aos vereadores (que têm, a propósito, o dever constitucional de fiscalizar a administração municipal); se nada funcionar, recorre-se então ao Ministério Público e ao Tribunal de Contas. “Mas em geral você liquida o caso logo na primeira etapa”, conta Cristofoli. “É muita exposição. Quando a gente pega uma irregularidade, é que está muito evidente.”

O roteiro básico dos Observatórios Sociais se completa com a divulgação dos editais, para aumentar a concorrência, a presença nos pregões, para apontar os lances suspeitos, e o acompanhamento das entregas, para garantir que os contratos sejam efetivamente cumpridos. “O efeito psicológico é muito grande”, diz José Roberto de Jesus, do OS de Rolim de Moura (RO). A entidade entrou em operação em 2009, seguindo um roteiro comum: antes de abrir as portas, azeitou o trânsito com o Ministério Público e arrancou, na campanha municipal de 2008, o compromisso público dos candidatos com a iniciativa. Já no primeiro ano, a cidade conseguiu reduzir o custo de várias compras: cálices de plástico baixaram de 12,90 reais em 2008 para 1,05 a unidade; anticoagulante, de 47 reais para 17,50 reais; papel para impressora, de 15 reais para 1,92 reais.

Metrópoles no alvo – A economia para os cofres públicos vai bem além das miudezas. A partir da análise de 378 licitações, Itajaí (Santa Catarina) conseguiu salvar do desperdício ou da corrupção 29 milhões de reais em 2012. Em São José (também em SC), a revogação de um único edital — para exploração do serviço de estacionamento rotativo — evitou desembolsos que somariam 15 milhões de reais ao longo de dez anos. “O grau de confiança dos observatórios é muito grande. Eles têm conhecimento técnico para verificar os documentos”, diz o promotor Davi do Espírito Santo, coordenador do Centro de Apoio Operacional da Moralidade Administrativa. Em 2013, o MP de Santa Catarina formalizou uma parceria com OSs do estado. São duas frentes. Por uma delas, os OS vão ajudar a verificar se as administrações municipais estão cumprindo a lei de acesso de informação efetivamente. Na outra frente, as ONGs farão chegar aos promotores as denúncias de editais viciados.

Segundo Espírito Santo, uma das razões da credibilidade dos observatórios é seu caráter técnico. “Não são denúncias movidas por partidarismo ou vingança”, diz. Para manter este perfil, os observatórios não aceitam militantes entre seus 1.500 voluntários nem funcionários dos órgãos que eventualmente serão fiscalizados. “O foco é a gestão, não o prefeito”, diz Roberto de Jesus.

Esta neutralidade política tem se mostrado um empecilho para a implantação dos Observatórios Sociais nas grandes metrópoles, onde a agenda dos partidos, governo e oposição exerce maior influência sobre as entidades que costumam prestar auxílio aos escritórios. “Nas cidades de pequeno ou médio porte, a experiência tem funcionado muito bem. Mas ainda não sabemos lidar com cidade grande”, admite Cristofoli.

Em São Paulo, a iniciativa está sendo gestada com apoio do sindicato dos auditores-fiscais da Receita Federal. Para além da questão política, Luiz Fuchs, vice-presidente do Sindifisco em São Paulo, aponta o tamanho da cidade como o principal desafio. Por exemplo: o orçamento da cidade aprovado para 2013 foi de 42,1 bilhões, quase cinquenta vezes o de Maringá, de 870 milhões. Fuchs explica que ainda está em estudo a melhor estratégia para enfrentar as contas municipais, se por região ou subprefeitura, por exemplo.

Má gestão – O monitoramento sistemático das contas eleva o debate sobre a qualidade do gasto público. Em junho de 2013, por exemplo, a Câmara de Ponta Grossa licitou a compra de sete veículos. Exigências: freio a disco nas quatro rodas, faróis de neblina, vidros elétricos nas quatro portas, aparelho de MP3 e câmbio automático. Total orçado: 311.184,60 reais. Os números vieram a público, e pipocaram as críticas. Os vereadores então baixaram as exigências, e o custo final da compra saiu por 198.800 reais, uma economia de 112.384,60 reais.

Às vezes nem se trata de corrupção. É má gestão, mesmo. Depois dos casos dos comprimidos, os maringaenses descobriram, por exemplo, que a cidade mantinha estocados cadernos de desenho em quantidade suficiente para os próximos 24 anos, carbono preto para 62 anos e pincéis marcadores para 133 anos. Em resposta à revelação desses e de outros absurdos, a prefeitura promoveu a organização de um almoxarifado central e a informatização do controle de estoques. “Hoje temos uma execução orçamentária mais racional”, diz a presidente do Observatório Social de Maringá, Fábia dos Santos Sacco. “Não está perfeito. Mas avançamos bastante.”